Olivier Reboul
A
Filosofia da Educação não é a pedagogia. Também não é a psicologia da criança.
É um ramo da Filosofia. Ora a filosofia não visa um saber-fazer, nem
mesmo um saber, mas antes de mais o pôr em questão de tudo o que
acreditamos poder e saber.
O que é
que caracteriza este pôr em questão?
Em primeiro lugar ela é total: É um facto que já se filosofou sobre
tudo, sobre Deus, sobre a delicadeza, sobre a ciência, sobre a arte, etc. Tal
não significa que um filósofo seja alguém que se meta em tudo; pelo contrário,
cabe-lhe limitar a sua investigão em função dos seus próprios meios. O que se
quer dizer é que nenhum domínio da existência humana escapa à interrogação
filosófica.
Por outro
lado, toda a gente põe questões filosóficas, mas há poucos homens que tenham a
coragem de as pôr até ao fim. É sobretudo aqui que se reconhece a filosofia:
ela é radical , vai até à raíz do objecto que tem em vista. O homem
vulgar, pergunta: “que horas são?”, enquanto o filósofo pergunta: “o que é o
tempo?”; e também “o que é o espaço, o ser, o homem?”.
O que o
leva a questionar assim não é um simples interesse especulativo; a pergunta
filosófica diz-nos respeito, e diz respeito à nossa própria existência: é vital.
Assim, quando se pergunta: “o que é o tempo?”, é de nós mesmos que se trata, da
nossa angústia e da nossa felicidade, da nossa vida e da nossa morte. Se o
existencialismo é apenas uma das filosofias existentes, e talvez ultrapassada,
continua a ser verdade que toda a filosofia é existencial.
É a este
nível que se pode falar de uma filosofia da educação.
Em
primeiro lugar, a educação é uma parte da existência humana, da mesma forma que
a arte, a ciência, e a linguagem. Deve por isso haver uma filosofia da
educação ao mesmo título com que existe uma estética, uma epistemologia, uma
filosofia da linguagem. A filosofia da educação é aliás ensinada nas
universidades anglo-saxónicas como um ramo à parte. Apesar de em França não ser
assim, a verdade é que Montaigne, Rousseau, Comte, Alain foram, cada um à sua
maneira, filósofos da educação.
Poderia
pensar-se que se trata de um ramo menor da filosofia. No entanto, se se
perguntar a um filósofo o que é o homem, o que o distingue do animal, ele
responderá: o homem caracteriza-se pelo trabalho, ou pela linguagem, ou pela
cultura. Ora, não existe trabelho, nem linguagem, nem cultura sem educação. O
que diostingue o homem do animal, dizia Kant, é que “o homem não se pode tornar
homem senão pela educação” A filosofia da educação é pois uma interrogação radical.
A filosofia da educação não pergunta como curar a dislexia, mas de onde vem a
importância que se atribui ao facto de ler; não pretende melhorar as relações
entre pais e filhos mas indaga a natureza da família, o seu valor, os seus
limites, numa palavra, o seu sentido; não ensina a estabelecer o emprego do
tempo escolar mas examina o valor de cultura das diferentes disciplinasa
escolares. Gradualmente, coloca-nos diante da mais radical das questões: “o que
é o homem para que deva ser educado?”
Questão
igualmente vital pois que diz respeito ao destino das crianças que nos são
confiadas e, por isso mesmo, ao futuro da humanidade que está para vir. Se o
homem deve o que é à educação, então não é nunca tarde demais para se perguntar
qual o seu valor, as suas possibilidades e os seus limites, isto é, para fazer
uma filosofia da educação.
Em boa
verdade, este empreendimento não é novo. Desde que uma civilização, mesmo
arcaica, se interroga sobre o sentido da educação por si dispensado, a
filosofia da educação tem aó i seu começo:
“Quando
amanhã o teu filho te perguntar: “Que são estas instruções, estas leis e estes
costumes que o Eterno, vosso Deus, nos prescreveu?” - tu dirás ao teu filho ... “
( Deterónimo, VI, 20 e ss )
Quando
amanhã: Chega
sempre um momento em que a criança interroga os seus pais, em que o aluno
critica o seu mestre, em que toda uma geraçao pôe em questão a geração que a
precedeu. É este o momento da filosofia: quer nós queiramos quer não,
estamos colocados entre a espada e a parede. Como Édipo diante da
Esfinge, temos que responder ou morrer.
Tu dirás
ao teu filho:
Evidentemente a resposta da Biblia pode parecer completamente desactualizada. O
que permanece actual é o facto de ela não se servir de rodeios, não tentar
justificar as inumeráveis prescrições da Lei judaica por um apelo à autoridade,
ou à utilidade, ou aos bons sentimentos, antes ir direita ao essencial, ao porquê
de todos os constrangimentos e de todas as suas regras: “...a fim de temer o
Eterno nosso Deus, de sermos sempre felizes e de viver”
Hoje o
problema da educação pôe-se com uma intensidade quase insustentável. O
movimento de Maio de 1968 não começou por uma contestação dos poderes públicos,
mas sim dos professores, da sua autoridade, da instituição que eles
representavam e, finalmente, de toda a civilização. Abriu-se o debate em
França, como em outros sítios, sobre o sentido da educação. Existe hoje em dia
algum pai que não tenha sido posto em causa pelos seus filhos ou um mestre
pelos seus alunos? Não é verdade que as instituições como a escola, a família,
a universidade, antes incontestáveis, se encontram hoje contestadas? Lastima-se
que esta contestação tome uma forma selvagem e exclua todo o diálogo. Mas, quem
é que primeiro exclui o diálogo: não fomos nós que constantemente eludimos ou
reprimimos as questões mais vitais da juventude, sobre a autoridade, sobre o
valor das regras sociais, sobre Deus, sobre a política, sobre o sexo, em vez de
respondermos indo directamente ao essencial? Acreditámos sempre que era ainda
demasiado cedo para responder; os jovens por seu lado pensam, e não sem razão,
que é já demasiado tarde.
E é por
isso que hoje, diante destas questões que os jovens nos colocam, a filosofia da
educação é tão útil; questões que nos pôem contra a parede, questões difíceis,
que tocam nos problemas éticos e políticos mais agudos e às quais é impossível
arriscar responder sem nos comprometermos.
Perguntar-se-á
se, apesar de tudo, esta reflexão filosófica não é vazia; hoje que existem as
“ciências da educação”. É aqui que é preciso recordar a tarefa específica do filósofo.
Primeiro,
sem com isso querer reduzir a filosofia à análise lógica, pode-se dizer que a
filosofia da educação é insubstituivel enquanto reflexão sobre o sentido das
palavras usuais e suas relações. Filosofar é, em primeiro lugar, perguntar o
que se quer dizer. Tomemos esta afirmação de Horace Mann: “Todo o homem que
nasce neste mundo tem direito natural à educação”. O que significa aqui natural,
e qual a sua relaçãoo com o direito; trata-se de uma constatação de
facto, de uma prescrição moral ou da expressão de um sentimento? Outro exemplo:
pergunta-se: “o que é a educação moral?” O senso comum responderá: “é fazer com
que as pessoas se conduzam moralmente”. Basta reflectir um pouco para ver
quanto esta resposta é contestável e mesmo perigosa pois que se a educação
consiste simplesmente em levar as crianças a não roubar, a não mentir, a
obedecer às normas em vigor, teríamos apenas produzido autómatos, incapazes de
compreender o que fazem e porque o fazem, incapazes portanto de se adaptar a
novas situações. Sob a ocupação alemã, mentir, roubar, infringir as normas
válidas em tempo normal, poderia ser moral. Fazer com que as pessoas se
conduzam moralmente é arriscar fazer com que não haja moral, nem mesmo gente!
Mas, não
chega perguntar o que se quer dizer. Trata-se também de saber o que se quer
dizer. É sobretudo aqui que a filosofia é insubstituível. As ciências
humanas estudam o objecto da educação, em particular a criança, quanto à
sua natureza, ao seu meio e à sua evolução. A pedagogia estuda os meios
da educação. A filosofia reflecte sobre os seus fins: porque é que se
educa ? qual o critério de uma educação bem sucedida ? Quando um pai declara ao
seu filho : “É para teu bem”, esta referência a um “bem” é já uma posição
filosófica que nenhuma ciência pode fundamentar. O fim da filosofia é saber o
que implica esta opção, por exemplo, será possível “fazer o bem” contra a sua
vontade ? A partir do momento em que um educador se interroga sobre os fins do
seu empreendimento, fá-lo filosofando, desde que com conhecimento de causa.
Se estes
problemas dizem necessariamente respeito à filosofia, é igualmente verdade que
os grandes filósofos abordaram o problema da educação: Platão, Aristóteles, St.
Agostinho, Tomás de Aquino, Montaigne, Erasmo, Hegel, Comte, Hobbes, Locke,
Hume, Rousseau, Kant, Fichte, Spencer, Nietzsche, Alain, Dewey, para não citar
senão aqueles que fizeram da educação o tema central do seu pensamento. O
próprio Descartes, pouco preocupado em ensinar, não começou ele o seu Discurso
pelo processo de educação que havia recebido? Com efeito, uma filosofia da
educação depende sempre das premissas metafísicas do seu autor: ela será
diferente num racionalista e num empirista, num idealista e num
materialista, num conservador e num revolucionário. No entanto, seria
desconhecer o espírito filosófico acreditar que aborda os novos problemas que
se lhe colocam de forma preconceituosa. Se cada filósofo considera a educação
em função do seu sistema, seria possível mostrar, em contraposição, de que modo
essa consideração interfere na génese d o seu sistema. Compreender-se-ía mal
Platão, por exemplo, se se ignorasse a sua revolta contra o absurdo da educação
tradicional e contra o engano do ensino sofistico.
De forma
ainda mais profunda, poder-se-ia afirmar que a educação é talvez a prova
decisiva do pensamento filosófico. Ela permite discernir o sentido humano dos
debates filosóficos para lá dos seus aspectos técnicos, colocar os conceitos
mais abstractos à prova da prática, mostrar que a filosofia não é somente
trabalho de especialistas, mas dos homens.
“O ponto
de vista da educação permite-nos compreender os problemas filosóficos no lugar
em que eles surgem e crescem, no seu lugar próprio, lá onde o “sim” e o “não”
exprimem uma oposição prática. Se se vir na educação, a formação das tendências
fundamentais, intelectuais e afectivas, que têm por objecto a natureza e os
nossos semelhantes, podemos chegar ao ponto de definir a filosofia como a
teoria geral da Educação” ( Dewey, Democracy and Education, p.328 )
“Quando
amanhã o teu filho te perguntar”: não há dúvida de que toda a filosofia nos
prepara para o amanhã. E quando a Filosofia reflecte sobre a Educação não é
verdade que ela se transforma então na forma mais elevada da educação, a
“educação dos educadores?”
(Tradução de Susana do Céu Gil Andrade, revisão de
Olga Pombo)
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